Programas externos de erradicação forçada influenciaram construção do Estado brasileiro
CARLOS HAAG | Edição 198 - Agosto de 2012
Como em qualquer casamento, a união entre Brasil e brasileiros para a formação de um Estado nacional aconteceu sob a advertência do “na saúde e na doença”, em especial esta última, pois após o médico Miguel Pereira declarar, em 1916, que o “país é um imenso hospital”, os brios nacionais foram dirigidos para desfazer essa imagem negativa que maculava os “noivos”. O padrinho “acidental” dessa união foi um estrangeiro, a Divisão Internacional da Fundação Rockefeller, presente entre nós desde os anos de 1910 em parcerias com o governo brasileiro no combate à ancilostomíase e à febre amarela e na formação de profissionais da saúde. A tese da saúde como força-motriz da nação é do historiador Gilberto Hochman, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz e coordenador do projeto Saúde pública e construção de Estado: políticas nacionais, organizações internacionais e programas de controle e erradicação de doenças no Brasil. O “presente” oferecido aos recém-casados era a crença em um programa recente adotado pela fundação, a erradicação de doenças e seus vetores, em oposição ao mero controle, como preconizavam médicos brasileiros que preferiam enfrentar doenças como a malária, então o “grande inimigo” do progresso, com a melhoria de vida dos pobres e quinino. Hochman traz visão alternativa do que até então era visto apenas como mais uma forma de “imperialismo ianque”, desta vez via medicina.
A Rockefeller, no contexto de entusiasmo incontido pela ciência da época, rejeitava paliativos e prometia cortar o mal pela raiz e erradicar de vez as enfermidades com todo o aparato tecnológico disponível e uma organização quase militar de combate, dirigida pelo médico Fred Soper (1893-1977), cuja experiência em doenças tropicais era restrita a um curso intensivo de três semanas. Segundo ele, se o mosquito Anophelesgambiae, encontrado nos anos 1930 no Nordeste, não fosse erradicado, a epidemia sairia de controle e, mais importante, chegaria aos Estados Unidos. Segundo o pesquisador, o novo governante brasileiro, Getúlio Vargas, que queria uma nação unida e saudável, mesmo que “na marra”, abriu as portas para Soper.
“A decisão de ‘erradicar’ doenças deve ser vista de pontos de vista históricos, ideológicos e políticos. No Brasil, foi adotada por pressões externas que, em função do tipo de forças políticas no poder, foram aceitas com cautela ou alinhamento a esse conceito. A saúde pública foi crucial no processo de construção do Estado nacional. Territórios e populações foram incorporados ao Brasil a partir de agulhas e seringas. Nesse processo, foi fundamental a interação entre organismos internacionais e nacionais de saúde, feita, numa primeira fase, para o combate à malária, entre 1939 e 1969”, afirma o pesquisador. “Isso não ocorreu sem diálogo, tensão e conflito entre as duas partes, com redes de interesses políticos e econômicos e diversidade e assimetria entre países, atores e instituições”, observa. Ainda assim, a erradicação imposta pelos Estados Unidos e implantada pela Rockefeller ajudou a “criar” um país, bem como impactou, e muito, o conceito de sistema de saúde nacional, responsável, ainda hoje, por suas conquistas e mazelas.
“Também foi importante para toda uma geração de jovens médicos e epidemiologistas que participaram das campanhas e, mais tarde, ajudaram a revisar o conceito de ‘erradicação’, então vertical e imposto que desprezava as práticas culturais, higiênicas e nutricionais das populações rurais brasileiras, que deveriam passivamente receber, e ‘agradecer’, os benefícios da nova medicina pública”, analisa Gilberto. “Assim, após uma longa trajetória histórica das políticas de saúde associadas ao processo de construção do Estado nacional, um desenvolvimento ligado a poder, desigualdade, inclusão, controle, direitos civis, como resultado imprevisível à população, aos poucos conquistou uma ‘cidadania biomédica’, consolidada na Constituição de 1988, em que a imunização se transforma de coerção em direito”, analisa.
Do lado da Rockefeller e, mais tarde, dos países do Primeiro Mundo, o Brasil também foi fundamental para a defesa do conceito de erradicação. “Desde o século XIX o país mantém uma relação intensa com questões e organismos internacionais de saúde ligada a ciclos epidêmicos de cólera, varíola, febre amarela e malária. Aqui foram feitos ensaios de como se fazer uma campanha de saúde que serviram como base para empreendimentos mais amplos e globais”, avalia Gilberto. Desses experimentos emergiu a crença na urgência de erradicar doenças em escala global, que esteve no topo da agenda das organizações internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial. Ciência e medicina eram vistas como meios fundamentais para levar países pobres ao panteão do Primeiro Mundo, evitando-se, assim, o crescimento do populismo e do socialismo nessas regiões. “Havia a crença, ainda hoje preconizada por muitos técnicos e organizações, de que eram as doenças que impediam o desenvolvimento socioeconômico dos países pobres, e não o contrário, que era a pobreza que gerava as doenças”, observa o historiador da medicina Randall Packard, da Johns Hopkins University, autor, ao lado do brasileiro Paulo Gadelha, do estudo A land filled with mosquitoes: Frederick Soper, the Rockefeller Foundation and the Anopheles gambia invasion of Brazil, 1932-1939 (1994).
“Eram tempos de grande entusiasmo pela capacidade da ciência em mudar as coisas. Mas essa expertise era privilégio de partes do globo e precisava ser transferida para as outras que não a detinham. Era uma visão de que boa parte do mundo carecia de soluções que viriam de fora, ainda que isso implicasse um total desconhecimento do que realmente acontecia nos países em intervenção”, nota o americano. “A erradicação foi pensada como intervenções técnicas, conduzidas por especialistas que objetivavam a eliminação completa de doenças, uma após a outra, sem nenhum tipo de envolvimento com os determinantes sociais e econômicos da relação saúde-doença. Era o ‘universalismo etiológico’, ou seja, em qualquer lugar onde a doença fosse encontrada, presumia-se que teria a mesma causa e seria eliminada pelos mesmos métodos, independentemente das diferenças nas condições econômicas e geográficas e de classe das populações, que não se levava em consideração”, observa o historiador Rodrigo Cesar Magalhães, que está trabalhando no projeto Desenvolvimento e cooperação internacional em saúde: a campanha continental para a erradicação do Aedes aegyptie os seus impactos no Brasil, na Universidade de Maryland, com apoio da Fundação Fullbright, pesquisando os Fred L. Soper papers. “A erradicação, que teve em Soper o seu maior defensor, tinha um caráter universalista e, para ele, não havia necessidade de reformas sociais profundas para diminuir a incidência de doenças como malária e febre amarela”, conta.
Soper, que esteve no Brasil entre 1920 e 1942, é a figura central do livro mais recente da historiadora e brasilianista americana Nancy Stepan, professora emérita da Universidade Columbia, Eradication: ridding the world of diseases forever?. O médico americano liderou uma campanha sanitária no Nordeste brasileiro que culminou com a erradicação, em tempo recorde – apenas 35 meses –, do mais eficiente dentre os vetores da malária, o mosquito Anopheles gambiae. O relatório dessa “vitória”, aliás, Anopheles gambiae no Brasil – 1930 a 1940, de 1943, acaba de ser publicado pela Fiocruz, a primeira versão fiel do estudo em português. “Esse suposto ‘sucesso’, que provou ser passageiro e enganoso, revela como campanhas internacionais de erradicação são um obstáculo ao desenvolvimento de sistemas de saúde básicos, levando governos a investir dinheiro em ações custosas que comprometem os programas locais existentes, nem sempre baseados nas necessidades de um dado país. Muitas vezes, doenças são eleitas como alvo de campanhas internacionais em função de critérios políticos, econômicos e simbólicos, ou seja, por razões outras que a devastação que causam em relação a outras enfermidades e problemas que assolam um país”, explica Nancy.
“Soper era um administrador autocrático que pouco se interessava por pesquisas e desconfiava da eficácia de vacinas, preferindo a erradicação de vetores das doenças. Para ele, cada programa nacional deveria ser uma entidade independente com seus próprios empregados e um coordenador que se reportava diretamente ao chefe de Estado. No caso brasileiro, sua parceria com o regime autoritário de Vargas foi perfeita”, observa a pesquisadora. A tecnologia organizacional trouxe ao Brasil uma nova mentalidade de saúde pública, especialmente na sua estruturação. “Já nos anos 1920 se percebe como a erradicação nos moldes da Rockefeller e Soper vai reorganizando o país. Em plena República Velha, de um federalismo exacerbado, os americanos desenvolvem, ainda que timidamente, uma campanha vertical de total precisão em que um supervisor cronometrava o tempo que um agente do Serviço de Febre Amarela (SFA) levava para percorrer um quarteirão. Era um assombro”, nota Gilberto.
Soper foi nomeado chefe do escritório da Fundação Rockefeller no Brasil e coordenador do SFA em 1930, mesmo ano em que Vargas tomava o poder. “Getúlio queria modernizar e unificar o país, criar uma nação, e aceitou de bom grado a colaboração dos americanos. O combate à doença consolidava a autoridade estatal em diversas regiões e era ideal no seu projeto de um Estado nacional coeso e forte”, observa Rodrigo. “Já do lado de Soper, o trabalho sanitário foi facilitado pela ausência de democracia. Era possível prender quem se recusasse a colaborar com os técnicos e há casos mesmo de trocas de tiros entre moradores recalcitrantes e agentes da SFA”, conta a historiadora francesa Ilana Löwy, diretora de pesquisa do Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm) e autora do estudo Representação e intervenção em saúde pública: vírus, mosquitos e especialistas da Fundação Rockefeller no Brasil(1999).
“O pessoal da Rockefeller sabia que doenças como tuberculose, febre tifoide ou gastrenterite ocasionavam mais vítimas do que a febre amarela ou a malária, mas como aquelas eram percebidas como doenças ligadas às condições de vida, eram vistas como inadequadas para ações de erradicação com fins exemplares”, analisa. “Tinham um desejo de ‘civilizar’ os brasileiros, mas isso não era mera expressão de racismo ou imperialismo. Os funcionários da Rockefeller promoviam interesses de empresas americanas de construção, assegurando-lhes contratos em projetos de saneamento urbano e, ao mesmo tempo, estavam convencidos de que o Brasil se beneficiaria de suas ações”, observa Ilana. Ao longo do tempo e dos insucessos, a fundação foi se afastando das ideias de Soper, mas reveses inesperados, como o surto de febre amarela no Rio em 1928, e de malária em 1938, traziam sempre de volta à cena a erradicação.
E, com ela, os desdobramentos políticos sobre o Estado brasileiro. “Nos anos 1950 houve um entrecruzamento entre o otimismo sanitário e a Guerra Fria que levou a eleição da malária com o alvo das atenções internacionais, incluindo-se a política externa americana da administração Eisenhower. A erradicação ganhou novo impulso, pois era vista como precondição da liberação de populações para atividades econômicas, evitando movimentos sociais. Havia mesmo uma associação entre malária e comunismo, ambos capazes de ‘escravizar’ indivíduos”, conta Gilberto. Novamente a saúde mesclava-se diretamente com a consolidação do Estado nacional. “O governo de Juscelino Kubitschek enfrentava uma crise econômica grave e problemas de financiamento externo para seus projetos de desenvolvimento e a construção de Brasília. A política americana de cooperação em saúde, peça importante na Guerra Fria, dava assistência financeira para o combate à malária apenas para os países que convertessem seus programas de controle em programas de erradicação. Assim, em 1958, a malária, ‘quase extinta’ como dizia o então candidato Juscelino em 1955, voltou ao topo da agenda sanitária brasileira”, afirma o pesquisador. A malária foi então tratada numa intersecção de políticas de saúde locais, da agenda internacional, de projetos de desenvolvimento e interesses americanos. Mais uma vez a erradicação reunia brasileiros e estrangeiros e influenciava o modelo de Estado e de sistema de saúde nacionais.
Mas já surgiam críticas ao modelo e os chamados “sanitaristas desenvolvimentistas” defendiam campanhas horizontais contra as doenças que produziriam condições básicas de infraestrutura sanitária. Na contramão da erradicação soperiana, preconizavam o desenvolvimento socioeconômico como pré-requisito para a melhoria da saúde. O golpe de 1964, porém, jogou um balde de água fria nessas visões alternativas. O governo Castello Branco (1964-1967) inseriu o Brasil no esforço global das “erradicações”, trocando, em sintonia com as organizações internacionais, a malária agora pela varíola. “A erradicação da varíola poderia ser uma resposta política dos militares à comunidade internacional, dando legitimidade ao governo num momento em que se aumentavam a censura e a repressão internas. Ao mesmo tempo, foi uma oportunidade para os profissionais de saúde se qualificarem”, nota Gilberto. A campanha ampliava a agenda de saúde para além da erradicação de uma só doença, dava oportunidade para o incremento da produção de vacinas.
“Ao contrário da campanha da malária, que não teve nenhum apelo popular, a da varíola exigiu mobilização de multidões no esforço de vacinação. Embora não estivesse no plano dos militares, esse movimento aumentou o contato da população com os serviços de saúde e a compreensão da vacina como um bem público a ser oferecido pelo Estado”, observa o pesquisador. As dezenas de milhões de doses aplicadas em cinco anos, com uso aparentemente residual de meios coercitivos, modificaram a trajetória da imunização no país. “A erradicação da pólio e a meta de erradicação de outras doenças imunopreveníveis são consequência direta da campanha da varíola, que influenciou a oferta crescente de vacinas para uma população que cada vez mais demanda imunização, uma espécie de ‘civismo imunológico’”, avalia Gilberto. O Brasil passava da revolta contra a vacina coerciva para a vacina como direito conquistado.
“É uma vitória da cidadania, embora não só em termos positivos, pois nem sempre as escolhas são feitas pela sociedade, que, muitas vezes, não sabe que o dinheiro gasto numa campanha poderia ser usado para melhorar condições básicas de saúde, tão importantes como vacinações ou erradicações. O ‘remédio’ para isso é maior transparência, controle social e democracia”, avalia o historiador. Para Gilberto, hoje a questão é entender as possibilidades de políticas de saúde domésticas autônomas num mundo cada vez mais interdependente, que exige uma “diplomacia da saúde” que erradique, de vez, os velhos dogmas soperianos. “Afinal, vimos que as políticas estatais de saúde no Brasil do pós-Segunda Guerra tiveram sua dinâmica interna, mas foram resultantes e condicionadas por interações com pressões internacionais. A nacionalização da saúde vem se fazendo ao longo do século XX como formação do Estado brasileiro e muitas vezes usando elementos externos nessa própria construção.”
Curiosamente, essa mistura entre saúde e política talvez seja comprovada no país que importou a erradicação vertical para o mundo. “Há uma teoria que estou examinando de que o retorno do Aedes aegypti ao Brasil, nos anos 1950, após ser erradicado, seja fruto de um trabalho de combate malfeito no sul dos Estados Unidos. Há várias cartas inéditas de Soper acusando o governo americano de que as autoridades sanitárias não fizeram o trabalho que estava sendo feito no resto do continente. Mas como aquele modelo de campanha poderia ser implantado num contexto democrático como o dos Estados Unidos com sua cultura consolidada de liberdade e privacidade?”, pergunta-se Rodrigo. “No conflito entre erradicar o mosquito e as liberdades individuais, essas teriam prevalecido, com prejuízos para todo um continente. Caso a teoria esteja correta, seria uma ironia que confirmaria a questão da erradicação e democracia, com toda uma discussão sobre um suposto imperialismo americano nas Américas no âmbito da saúde.” Seria a confirmação de que é possível se ajudar a criar um país “na saúde e na doença”. O perigo, como sempre, é a “infidelidade” ou o “até que a morte os separe”.
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