Publicado em 05/10/2012
Estudo mostra que deslizes éticos em trabalhos científicos são mais comuns do que erros e levanta (mais) questionamentos sobre a integridade e credibilidade no meio.
De 2.047 despublicações, quase três quartos foram associados à má conduta, sendo 43,4% relativos a fraudes ou suspeitas de fraude, 14,2% a duplicações e 9,8% a plágios. Os erros responderam por 21,3% dos casos e o restante teve outras causas.
O fantasma da fraude voltou a assombrar a comunidade científica nesta semana. Desta vez, não foi um caso específico. Uma análise robusta da literatura biomédica mostrou que a má conduta nesse meio é mais comum do que se imaginava – ou se fazia crer.
Em estudo publicado na segunda-feira (01/10) na revista PNAS, pesquisadores dos Estados Unidos apresentam os resultados de uma revisão detalhada de 2.047 artigos da área biomédica e de ciências da vida – indexados na base PubMed – que foram ‘despublicados’ entre 1977 até maio deste ano.
Um artigo é ‘despublicado’ (retracted, em inglês) quando se identifica algum tipo de inconsistência que invalida seus resultados.
Geralmente as despublicações são atribuídas a erros não premeditados. Nesse caso, no entanto, estiveram associadas, sobretudo, a desvios éticos (67,4%), entre eles fraude ou suspeita de fraude (43,4%), publicação duplicada (14,2%) e plágio (9,8%). Os erros em si não responderam nem por um quarto das ocorrências (21,3%).
Aa taxa de artigos retirados por motivo de fraude aumentou 10% desde 1975
Segundo os autores, os anúncios pouco claros que acompanham as despublicações têm levado a uma subestimação dos casos de fraude a elas relacionados. Para contornar o problema e entender melhor os motivos que levaram às retiradas de publicação dos artigos analisados no estudo, os pesquisadores recorreram a outras fontes de informação, como dados do escritório norte-americano de integridade na pesquisa e os textos postados no blogue Retraction Watch, que se dedica a apurar casos de despublicações. A consulta a fontes secundárias levou a reclassificação de 158 despublicações.
Outro dado alarmante: a taxa de artigos retirados por motivo de fraude aumentou 10% desde 1975.
Ampla repercussão
O estudo ganhou espaço significativo no noticiário de ciência, sobretudo na imprensa gringa. No Brasil, a Folha talvez tenha sido o veículo que mais deu espaço à pesquisa. O jornal resgatou o maior caso de fraude científica do Brasil, envolvendo o químico Cláudio Airoldi, da Unicamp, e o engenheiro Denis Lima Guerra, da UFMT.
A dupla teve 11 artigos despublicados sob a acusação de manipulação de gráficos usados para respaldar os resultados de seus estudos. O caso está detalhadamente documentado na revista Piauí.
A Folha aproveitou a ocasião para ouvir Guerra, que enfrenta atualmente um processo administrativo na sua universidade por fabricação de dados. Na breve entrevista concedida ao jornal, ele reafirma sua inocência e se diz “muito tranquilo”. “Retomei meu trabalho, voltei a orientar alunos e não sofri retaliações por parte das revistas científicas.”
A cobertura internacional destacou a importância do estudo. Um psicólogo da Universidade de Cardiff ouvido pelo Guardian defendeu, inclusive, que esse tipo de pesquisa é mais relevante do que muitos dos trabalhos científicos publicados diariamente, pois aponta as falhas na ciência e indica onde a comunidade deve melhorar.
Razões e soluções
Tanto no artigo em si quanto nas matérias publicadas a seu respeito, discutem-se as possíveis causas para o aumento significativo de casos de fraude na ciência e sobretudo o que pode e deve ser feito para reduzir o número de ocorrências do tipo.
Para alguns dos entrevistados, uma fiscalização mais intensa por parte da comunidade científica explicaria o aumento do número de casos de despublicações por fraude. Os autores do estudo, no entanto, contestam essa explicação. Se este fosse o caso, o tempo entre a publicação e a retirada dos artigos inconsistentes teria diminuído, ao contrário do que foi verificado no estudo.
A pressão para publicar dados impactantes em periódicos de prestígio pode estar aumentando a tentação de subverter as regras do ‘jogo científico’
Por outro lado, o fato de os periódicos de alto impacto responderem – na amostra analisada – pelo maior número de despublicações por fraudes levou os autores a reforçarem suas críticas à forma como os pesquisadores são avaliados, reconhecidos e premiados nos dias de hoje.
Para eles e outros críticos ouvidos, a pressão em cima dos cientistas para publicar dados impactantes em periódicos de prestígio pode estar aumentando a tentação de subverter as regras do ‘jogo científico’ – o biólogo Stevens Rehn faz reflexão semelhante em matéria publicada na CH On-line sobre o sistema de avaliação dos pesquisadores no Brasil.
Instituições de pesquisa e revistas científicas têm adotado medidas mais rigorosas e lançado mão de novas técnicas para prevenir e detectar erros – premeditados ou não – em trabalhos científicos. No Brasil, por exemplo, o CNPq criou no ano passado a Comissão de Integridade na Atividade Científica para coordenar ações preventivas e educativas de ética na pesquisa e para avaliar casos em que haja dúvidas sobre a lisura na condução de estudos apoiados pela entidade.
Ainda em 2011, o CNPq e a Fapesp lançaram documentos com diretrizes para promover a ética na publicação de resultados de pesquisas. Este ano, a Unesp adotou o uso de um software capaz de detectar tentativas de plágio.
Embora essas medidas possam ajudar a conter a má conduta na ciência, os autores do estudo da PNAS defendem que o problema só será resolvido por meio de uma transformação mais radical no modus operandi da ciência.
Ferric Fang e Arturo Casadevall, que assinam o referido artigo, têm defendido, em outras plataformas, reformas metodológicas, estruturais e culturais no meio científico. Entre elas estão a revisão dos critérios para a concessão de recursos, a reincorporação dos diferentes ramos da filosofia ao cotidiano científico e a inserção da ética na formação dos cientistas.
Apesar dos dados preocupantes levantados pelo estudo, ainda é possível argumentar em prol da integridade da ciência. Afinal, segundo os próprios autores do trabalho, considerando toda a literatura científica, apenas 0,01% dos artigos são despublicados em função da detecção de fraude.
No entanto, há indícios cada vez mais robustos de que a ciência segue uma trilha perigosa ao fomentar tamanha disputa por reconhecimento e recursos. Para obtê-los, os pesquisadores se veem obrigados a manter um ritmo intensivo de produção e publicação, o que muitas vezes inviabiliza a manutenção de um nível adequado de qualidade e, cada vez mais, incita deslizes éticos.
Em um momento em que as nobres normas propostas pelo sociólogo Robert Mertonpara explicar a autogestão da ciência perdem cada vez mais o sentido e em que se completam 50 anos da publicação de A estrutura das revoluções científicas, livro do físico e filósofo Thomas Kuhn que transformou significativamente a imagem da ciência, nada mais pertinente do que o apelo por uma mudança de paradigma na cultura científica.
Quem sabe não é hora de a ciência descer do pedestal, reconhecer mais abertamente seus problemas e lidar mais radicalmente com eles?
Carla Almeida
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