Ladrão que rouba ladrão
Estudo lança novas perspectivas sobre um fenômeno curioso: um vírus que é capaz de infectar o parasito causador da leishmaniose tegumentar
É, como no ditado popular, um ladrão que rouba outro: um vírus que não tem como alvo o homem, mas o parasito causador de uma doença humana. Este é o caso curioso da leishmaniose – que afeta 1,5 milhão de pessoas, todos os anos, em 88 países – e do vírus conhecido como LRV (vírus de RNA de Leishmania). A ciência vem acumulando descobertas sobre este fenômeno e um pedaço controverso deste quebra-cabeças acaba de surgir, em estudo publicado na revista científica Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.
Fatores numerosos
Cerca de 10 espécies de Leishmania que podem causar a leishmaniose tegumentar circulam no Brasil. Estas podem ser transmitidas por diversas espécies de insetos flebotomíneos num ciclo que também envolve reservatórios silvestres e animais domésticos, como hospedeiros. Soma-se a este circuito complexo o vírus de RNA de Leishmania (LRV, na sigla em inglês), que pode infectar algumas espécies destes protozoários. Dois subtipos deste vírus já foram identificados, LRV1 (em espécies circulantes no novo mundo, ou seja, nas Américas) e LRV2 (em Leishmania (L.) major, uma espécie da Europa, também chamada de Velho mundo).
Embora tenha sido identificado pela primeira vez na década de 1990, pouco se sabia sobre o LRV até 2011, quando pesquisadores da Universidade de Lausanne, na Suíça, publicaram um estudo na revista Science. A descoberta associava a infecção do parasita pelo vírus LRV1 ao agravamento da doença humana: segundo os pesquisadores, haveria impacto sobre as metástases e as manifestações da forma mucocutânea da doença (considerada a mais severa devido às lesões crônicas que provoca na pele e nas mucosas do nariz e da faringe). A presença do vírus ativaria uma resposta imunológica hiperinflamatória do paciente e, consequentemente, desfavorável ao controle do agravo. Após recente investigação, pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) lançam nova luz sobre o assunto.
Novos dados
De acordo com a principal autora do artigo, a pesquisadora Luiza Pereira, e com a chefe do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas Médicas do IOC, Márcia Pereira de Oliveira, o objetivo da equipe brasileira era conduzir experimentos para identificar a presença do vírus LRV1 em casos graves vindos do estado do Rio de Janeiro. "Como o trabalho da Science havia utilizado apenas modelos experimentais de camundongos infectados com a espécie Leishmania (V.) guyanensis, identificamos a necessidade de incluir a principal espécie causadora de leishmaniose tegumentar no Brasil, que está associada ao maior número de casos de metástase: a Leishmania (V.) braziliensis", explicam. O estudo teve ainda a participação de pesquisadores do Laboratório de Pesquisas em Leishmaniose do IOC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade da Califórnia (UCLA), nos Estados Unidos.
Foram analisadas 48 amostras extraídas de lesões de pacientes que apresentavam diferentes formas clínicas da doença. Destes, nove eram portadores da forma mucosa (usualmente associada metástases após a cura clínica ou espontânea); dois possuíam a forma mucocutânea (que provoca lesões simultâneas na pele e na mucosa); 27 apresentavam quadro clássico; cinco tinham lesões recidivas; e cinco amostras eram oriundas de cicatrizes. Os pacientes estudados haviam contraído a doença nas regiões Nordeste; Sudeste, onde circula apenas a espécie Leishmania (V.) braziliensis; e Norte, território com maior diversidade genética de espécies, incluindo a circulação simultânea da Leishmania (V.) guyanensis e da Leishmania (V.) braziliensis.
Gutemberg Brito |
Luiza Pereira e a chefe do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas Médicas do IOC, Márcia Pereira de Oliveira
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A equipe do IOC encontrou o vírus LRV1 em apenas duas das amostras estudadas. Ambas eram oriundas de pacientes da região amazônica, infectados pela Leishmania (V.) guyanensis e com histórico de reincidência da doença após uma situação de cura clínica. Este achado corroborou a teoria de que a infecção de protozoários da espécie Leishmania (V.) guyanensis pelo vírus LRV1 pode estar associada a uma maior severidade da doença.
Gravidade multifatorial
Por outro lado, o vírus não foi identificado em nenhuma das dezenas de amostras coletadas nas áreas endêmicas para a doença no Sudeste e Nordeste – nem mesmo em pacientes graves que estavam infectados por Leishmania (V.) braziliensis. A partir dos dados, a conclusão sugerida é de que o vírus LRV1 não poderia ser o único fator associado ao agravamento do quadro clínico da leishmaniose.
"Dada a complexidade natural da doença, em que são diversas as manifestações clínicas e os agentes que as influenciam, é provável que mais de um fator contribua para gerar formas clínicas tão diversas” afirmam. Um dos indícios desta multifatorialidade pode ser observada na forma mucosa da leishmaniose cutânea, que acomete entre 5% e 10% dos pacientes mesmo anos após a cura: nesta situação, os mais atingidos são os mais velhos.
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS), são registrados 58 mil casos anuais no continente americano e o Brasil responde por 22 mil, perfazendo quase 40% do total. O país integra o rol das seis nações que concentram 90% dos casos no mundo, juntamente com o Afeganistão, Irã, Peru, Arábia Saudita e Síria.
Soma de esforços
De acordo com a pesquisadora Márcia Pereira de Oliveira, entender as implicações de um vírus alojado em um protozoário para a evolução da doença no paciente é tarefa para muitos pesquisadores. "É preciso olhar para os aspectos do hospedeiro, do vetor e do parasita de forma integrada, porque todos contribuem para o conjunto de manifestações clínicas. Para entender a leishmaniose, é preciso olhá-la com a multiplicidade que ela exige", ressaltou.
Luiza Pereira reforça a perspectiva de colaboração e indica que os próximos passos no conhecimento dos impactos do vírus LRV1 na leishmaniose tegumentar dependem da integração de esforços de pesquisadores em todo o Brasil. "Para entender a dinâmica deste vírus, será necessário mapear sua circulação em diferentes regiões do país, manter um banco de dados de amostras e acompanhar a evolução dos pacientes. Estamos iniciando um trabalho, em colaboração com o Laboratório de Pesquisas em Leishmaniose do IOC e outros grupos, com o objetivo de estudar a coevolução de Leishmania e LRV no Brasil.", finalizou Luiza.
Isadora Marinho
10/09/2013
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)
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