terça-feira, 13 de agosto de 2013

Onça-pintada não está mais a salvo nem nas unidades de conservação


A Associação Mata Ciliar, em São Paulo, abriga a filhote Juma
Foto: Eliária Andrade
A Associação Mata Ciliar, em São Paulo, abriga a filhote Juma
ELIÁRIA ANDRADE
RIO - Maior predador das Américas, a onça-pintada confere ao lugar onde vive uma espécie de selo de garantia de qualidade ambiental. No alto da cadeia alimentar, ela necessita de grandes áreas bem preservadas para caçar e manter a reprodução da espécie. Onde há onças há saúde ambiental. No território que ocupa, faz o manejo natural da caça ao alternar as áreas de ataque para manter a abundância de presas. Sem sua presença, o ecossistema se desestabiliza. Herbívoros tendem a proliferar sem controle e causam desequilíbrio, muitas vezes, permanente. Num sinal de empobrecimento dos ecossistemas brasileiros, a onça-pintada vê desaparecer seu habitat, escassearem suas presas e, por fim, encurralada por cães onceiros, tomba na mira das armas dos caçadores — figuras cada vez mais citadas como obstáculo às estratégias de preservação da espécie no país.O que mais surpreende no Brasil é que nem mesmo dentro de unidades de conservação, destinadas a preservar fauna e flora, o grande felino está protegido. Um levantamento feito em 2011 por pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros e do Instituto Pró-Carnívoros, com base em questionários respondidos por gestores de 100 áreas de proteção integral e de uso sustentável federais, mostrou que 43% das reservas onde já foi detectada a presença de onças-pintadas estão à mercê de caçadores.
Segundo relato dos gestores, nos dois anos anteriores à pesquisa pelo menos 60 onças foram mortas — uma média de 1,8 morte por unidade. Tombaram 38 onças-pintadas e 22 onças-pardas ou suçuarana. Entre as áreas de conservação públicas, a situação do Parque Nacional do Iguaçu, maior remanescente de Mata Atlântica do Sul do país, é emblemática. Praticamente não há fiscalização, o que o torna alvo de invasores.
Na reserva, onças-pintadas começaram a ser monitoradas há cerca de 20 anos por colares de telemetria, que permitem acompanhar a movimentação do animal por satélite. Mas dos 150 indivíduos que habitavam os 185,2 mil hectares do parque no ano 2000, restam não mais que 15.
— A população de onças-pintadas do parque foi reduzida drasticamente. Dos animais monitorados, 90% foram mortos por caçadores — afirma o biólogo Apolônio Rodrigues, coordenador do Projeto Carnívoros do Iguaçu, que formula estratégias para garantir a sobrevivência da espécie.
À medida em que florestas vão abaixo e dão lugar a plantações e aglomerados urbanos avançam sobre matas, cresce o número de animais silvestres sem ter onde ficar. A infraestrutura para recebê-los é insuficiente.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) administra 28 Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), seis deles na Amazônia. Apenas seis Cetas, nos estados do Amazonas, Amapá, Rondônia, Goiás, Ceará e Mato Grosso do Sul, têm recintos apropriados para receber onças.
Não há no país criadouros de animais silvestres mantidos pelo governo. As estruturas do Ibama são de permanência temporária e os animais resgatados, se não puderem ser devolvidos à natureza, são encaminhados a zoológicos ou instituições particulares. Em junho passado, o Conselho Nacional do Meio Ambiente publicou a resolução 457, que permite a qualquer cidadão manter em sua casa até 10 animais silvestres.
Duramente atacada e vista como facilitadora do crime de tráfico de animais silvestres, a resolução só encontra explicação na inexistência de estruturas públicas e privadas em quantidade suficiente, em distâncias aceitáveis, para receber os animais silvestres apreendidos em fiscalizações.
De caçadora a presa
Enquanto isso, as populações de onça não param de dimimuir. Hoje, no Parque do Iguaçu, apenas a onça Naipi ainda circula com o colar de monitoramento no pescoço. Embora arrecade R$ 17 milhões por ano com a visita de turistas às cataratas, o parque não fica com parte do dinheiro para usar em programas de preservação. O controle da população de onças, por exemplo, é financiado pela iniciativa privada, em mais um exemplo da situação de falta de estrutura dos parques nacionais, tema de uma série de reportagens publicadas este mês pelo GLOBO.
O biólogo Apolônio Rodrigues explica que a caça é um traço cultural da região do Iguaçu, cuja população é de origem europeia. Veados, pacas e caititus são perseguidos e mortos dentro dos limites da reserva. A diminuição da população de presas obriga a onça-pintada a sair da mata. Na busca por alimento, ela ataca animais em fazendas vizinhas ao perímetro do parque, de 420 km. De caçadora, vira caça.
— A presa preferida da onça-pintada, a queixada, foi extinta por aqui. Não há mais indícios de sua presença — constata Rodrigues, referindo-se à espécie de porco selvagem de queixo branco, cuja carne costuma ser apreciada em salames.
Isolado, o Parque Nacional do Iguaçu deixou de ser viável para a perpetuação da espécie. Para piorar a situação, no início de julho foi encaminhado para o Senado o projeto que reabre a chamada Estrada do Colono, uma via de 18 quilômetros que atravessa a área mais protegida da reserva para encurtar acesso a municípios da região. Para legalizar a travessia em área protegida, parlamentares tentam incluir o conceito estrada-parque na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Ambientalistas preveem que a onça-pintada terá cada vez menos chances de sobreviver. Numa tentativa de juntar forças para a preservação, foi criado o Corredor das Onças entre Brasil e Argentina, ligando a região das cataratas do Iguaçu a Esteros do Iberá. Inicialmente, o Paraguai também estava incluído, mas suas áreas de florestas acabaram reduzidas pela ação dos agricultores, que cruzaram a fronteira em busca de terras mais baratas.
— A ideia é tratar as populações de onças como uma só e salvar a espécie — afirma Rodrigues. — Somando Brasil e Argentina, a quantidade de animais pode chegar a 50.
Vítima do agronegócio
Enquanto o Parque Nacional do Iguaçu possui um sistema de armadilhas fotográficas em um terço de sua área e recebe ajuda da Polícia Florestal, ligada à Polícia Militar, para patrulhamento, a Argentina conta com um serviço específico de guardas-parques, de formação universitária.
— São muito bem preparados, são quase biólogos armados em defesa da fauna e da flora — exemplifica Rodrigues, ressaltando que, além de formação específica, os guardas-parques argentinos são muito respeitados pela população, pois a lei de proteção ambiental prevê prisão dos que forem flagrados agindo irregularmente nas reservas.
No geral, as onças são mortas por atacar rebanhos em propriedades vizinhas, por serem vistas como ameaça às pessoas que circulam pelo lugar ou, simplesmente, pelo prazer que caçadores sentem em persegui-las e matá-las. Com as reservas florestais cada vez mais ilhadas pelo agronegócio, é natural que o felino se movimente no entorno. O gado se torna presa fácil. E o pecuarista quase nunca perdoa o prejuízo.
Mas é a caça esportiva que provoca maior aversão. Tiveram repercussão o caso de safáris de onças promovidos por uma sobrinha-neta do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, no Mato Grosso do Sul, e o de um professor universitário do Paraná, acusado de promover caçadas para divertir turistas estrangeiros, por US$ 1.500 por pessoa no Mato Grosso. Ambos foram flagrados pelo Ibama e pela Polícia Federal.
No Brasil, a única chance de o caçador ir para a cadeia é ser surpreendido com a arma ilegal, sem registro. Neste caso, é pego pela Lei do Desarmamento. Como a maioria se livra da arma quando a polícia aparece, o trabalho de convencimento e educação ambiental têm sido a via para a preservação da onça-pintada no Brasil. Quando a presença do animal é detectada em alguma propriedade, os donos são orientados a tomar medidas de precaução para evitar ataques.
Estratégia de conservação
No Pantanal, onde praticamente não há unidades de conservação federais, a onça-pintada vive em propriedades particulares. Ali, o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), do Instituto Chico Mendes de Preservação Ambiental (ICMBio), desenvolve pesquisas para turismo de observação, a exemplo da África. O projeto-piloto, na Fazenda Refúgio Ecológico Caiman, de 53 mil hectares, consiste em acostumar os animais a não fugir com a aproximação de veículos e pessoas. Hoje, a maioria dos bichos associa a presença humana a perigo e desaparece.
— A relação com a onça-pintada é de respeito quase simbólico. É um animal difícil de ver, mas você sabe quando ele está presente. Vê rastros, pegadas. Onde há onça, não se anda sozinho à noite — diz o antropólogo Felipe Süssekind, cuja tese de doutorado, “O rastro da onça”, analisa as relações entre o animal, os biólogos e os pantaneiros — entre eles caçadores orgulhosos da matilha de cães “onceiros”, que encurralam o bicho para o tiro do caçador.
A educação de convivência entre fazendeiros e onças é uma ação de longo prazo. Segundo Ronaldo Morato, chefe do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), a onça-pintada corre risco imediato de extinção na Mata Atlântica e na Caatinga. O recente aumento no desmatamento na Mata Atlântica, torna o animal ainda mais vulnerável. Na Caatinga, onde sequer há estudos detalhados sobre a situação do felino, a criação do Parque Boqueirão da Onça, na região de Sobradinho, na Bahia, se arrasta sem decisão há cerca de oito anos.
A fragmentação da floresta no bioma Mata Atlântica tornou comum o atropelamento de onças-pardas — as mais comuns e adaptáveis à presença humana — em estradas. Por todo o país, têm sido mais frequentes o resgate de filhotes órfãos. Sem a mãe, eles não aprendem a caçar e a viver na natureza. Em média, a fêmea protege e ensina o filhote durante todo o primeiro ano de vida. Sem este aprendizado, a alternativa é o cativeiro.
Dentro de um dos recintos da Associação Mata Ciliar em Jundiaí, um dos 58 municípios da macrometrópole formada por São Paulo e Campinas, a onça-pintada Juma se diverte com uma bola amarela. Difícil acreditar que, na área mais urbanizada do país, habitada por mais de 23 milhões de pessoas, o filhote de apenas três meses possa estar mais protegido do que em seu antigo lar, Roraima, onde 54% do território são formados por terras indígenas, parques florestais e reservas ecológicas. Mas está. Em plena Amazônia, não há lugar ou equipes suficientes para cuidar do filhote órfão, resgatado desnutrido em um sítio nas imediações de Boa Vista.
No caso de grandes felinos, como Juma, o custo de manutenção em cativeiro é alto. Em um ano, um filhote consome por dia cerca de 5 quilos de carne. O filhote de Roraima não é a primeira onça da Amazônia a ir parar em São Paulo. Em 2010, Krishna, uma onça-parda encontrada em Rio Preto da Eva, município de floresta exuberante no Amazonas, foi doada a um criadouro em Santa Rita do Passa Quatro, no interior paulista. Separada da mãe ainda filhote, ela não aprendeu a caçar e viveu provisoriamente por quase dois anos em instalações do Ibama até encontrar um abrigo definitivo que a aceitasse. Na megametrópole paulistana, Juma está a salvo dos caçadores que mataram sua mãe. Sem precisar disputar presas, poderá viver entre 12 e 15 anos e, quem sabe, ajudar na sobrevivência de sua espécie.
Originalmente, a onça-pintada existia em todos os biomas brasileiros, à exceção dos Pampas. Hoje, poucos exemplares sobrevivem nos fragmentos que restam da Mata Atlântica e a espécie está também criticamente ameaçada na Caatinga, onde a vegetação lenhosa desaparece e vira carvão. No Pantanal e na Amazônia, as populações de jaguares são maiores, mas o destino de Juma revela o drama do mais temido predador das florestas.
— O cativeiro é hoje uma ferramenta para preservação da onça-pintada. Sem ele e sem uma estratégia de conservação por meio de biotecnologia, a espécie será extinta — diz a veterinária Cristina Harumi Adania, coordenadora de fauna da Associação Mata Ciliar, que coordena os cuidados com 72 felinos das oito espécies existentes no Brasil, todas ameaçadas de extinção.
Morato afirma que as técnicas de genética de conservação podem ser última chance para as onças-pintadas da Mata Atlântica. Há registros delas no Parque Nacional Serra da Bocaina, na divisa entre Rio e São Paulo, e em áreas da Serra do Mar, em São Paulo. A sobrevivência, porém, é cada vez mais difícil. Embora fêmeas possam viver em áreas sobrepostas, cada macho da espécie domina um território, cujo tamanho aumenta na medida em que o a população de presas é reduzida.
Pesquisas desenvolvidas pelo Laboratório de Biologia Genômica e Molecular da PUC/RS indicam que, para garantir a viabilidade da espécie a longo prazo seriam necessários pelo menos 650 indivíduos, número difícil de ser alcançado em áreas florestais fragmentadas. Em sua tese de doutorado, a cientista Taiana Haag ressalta que o cruzamento entre aparentados e perda de variabilidade genética provocam a redução da capacidade de reprodução e a diminuição da resposta a mudanças ambientais, aumentando o risco de extinção da espécie.
Em setembro, veterinários, biólogos e pesquisadores de todo o país se reúnem em Vinhedo, em São Paulo, para discutir a possibilidade de inseminação artificial em onças pintadas na Mata Atlântica. O objetivo é garantir o aumento no número de animais e também a diversidade de genes da espécie.
— Temos em curso programas de incentivo de restauração de florestas, para viabilizar corredores de biodiversidade — explica Morato. — É importante favorecer as conexões entre fragmentos florestais para garantir a variabilidade genética. Para ter sucesso fora de cativeiro, não basta apenas que nasçam filhotes. É preciso que eles cheguem à idade adulta e procriem.
A inseminação artificial de felinos em cativeiro foi uma experiência inédita da Associação Mata Ciliar. Embriões congelados por cinco anos deram origem a três filhotes de jaguatirica, dos quais dois sobreviveram — a fêmea Lua e o macho Bah. O sucesso pode ser replicado nas onças-pintadas. Mas, agora, a expectativa é que seja adotada em animais de vida livre. Capturadas, as fêmeas seriam inseminadas e libertadas com a esperança de que suas crias aprendam a viver na natureza.



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