Além de patentear proteína antigênica do hantavírus Araraquara e distribuí-la pelo país e pela América do Sul, pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP investigam outros vírus emergentes, como o Oropouche e o Bocavírus humano (CDC)
Por Frances Jones
Agência FAPESP – A descrição da doença, feita por médicos que já acompanharam casos de hantavirose, é impressionante. Em questão de horas, o raio X do pulmão de um paciente pode passar de normal para o de alguém que está morrendo. O que começa muitas vezes como uma simples febre vira uma pneumonia gravíssima em curto tempo, com pouca chance de reversão.
Em 2012, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou no país 47 casos confirmados dessa doença emergente, cujo nome oficial é síndrome pulmonar e cardiovascular por hantavírus (SPCVH) –adquirida quando se inalam os aerossóis da urina, da saliva e das fezes de ratos silvestres infectados. Desde que foi descoberta nas Américas, em 1993, até hoje foram registrados cerca de 1,6 mil casos no Brasil. O número é baixíssimo, se comparado com outras moléstias, mas o que preocupa é a sua letalidade: quase metade dos infectados morreu.
Há poucos centros no país com estrutura para estudar um microrganismo tão virulento, entre eles o Centro de Pesquisa em Virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), que construiu um laboratório de nível 3 de biossegurança (o segundo mais seguro da escala) com auxílio da FAPESP.
Em 2006, com apoio da USP e da FAPESP, os pesquisadores depositaram um pedido de patente, publicada dois anos depois, de uma proteína antigênica de hantavírus – que provoca a formação de anticorpos específicos quando introduzida no organismo – produzida no centro. Atualmente, a proteína é usada para fazer o diagnóstico da doença. Mas a ideia é criar uma vacina a partir dela.
“Como ela induz a produção de anticorpos, poderia ser avaliado o seu potencial como vacina”, disse o pesquisador Luiz Tadeu Moraes Figueiredo, coordenador do Projeto Temático "Estudos sobre vírus emergentes incluindo arbovírus, robovírus, vírus respiratórios e de transmissão congênita, no Centro de Pesquisa em Virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo", concluído em 2012.
“Temos de saber antes se essa proteína que produzimos protege animais contra a infecção. Se ela proteger, vamos em frente até chegar ao homem. É um processo demorado, mas nós pretendemos começar”, afirmou.
A proteína em questão é o segundo método de diagnóstico de hantavirose desenvolvido pelo centro. O primeiro usa uma técnica relativamente comum, a reação em cadeia de polimerase, em tempo real, na qual se detecta o genoma do vírus em uma amostra do sangue do paciente ou de um fragmento de tecido de uma vítima.
A fim de produzir a proteína do hantavírus, os pesquisadores selecionaram um gene do vírus Araraquara – principal responsável pelas hantaviroses da região de Cerrado brasileiro, atingindo uma área que vai do nordeste do Estado de São Paulo até o sul do Maranhão – e o transferiram para uma bactéria.
A bactéria passou a produzir a proteína, que depois foi purificada pelos cientistas para ser utilizada nos testes. Os anticorpos no sangue do paciente são detectados por um teste imunoenzimático denominado Elisa.
“Os dois métodos de diagnóstico são feitos a partir de exames de sangue do paciente. Em um, procuramos pelo genoma do vírus; no outro, buscamos por anticorpos contra o antígeno do vírus que produzimos em laboratório”, disse Figueiredo.
Outros Estados e países
Depois de patenteada, a proteína recombinante do hantavírus Araraquara foi enviada a outros centros de pesquisa dentro e fora do Brasil para auxiliar nos diagnósticos e nos estudos sobre esse tipo de vírus.
Já foram feitos trabalhos na Argentina e na Colômbia a partir dessa proteína, conta Figueiredo. “Pela primeira vez na Colômbia estão fazendo diagnóstico de hantavirose e é com a nossa proteína; eles suspeitavam que a doença existia, mas não faziam o diagnóstico. Agora vão começar a fazer.”
No Brasil também são estudados casos pioneiros em Estados como Amazonas, Mato Grosso e Ceará. Agora, os cientistas querem saber qual é o tipo de hantavírus que circula por esses Estados, uma vez que a doença pode se manifestar de maneiras diferentes e ser transmitida por roedores diversos. No Ceará, por exemplo, os casos não parecem ser tão graves como os registrados em São Paulo ou Minas Gerais, de acordo com o pesquisador.
Por enquanto, dos hantavírus conhecidos, o mais virulento, segundo Figueiredo, é mesmo o Araraquara, cujo animal reservatório é o roedor Necromys lasiurus , popularmente chamado de rato-do-rabo-peludo, encontrado nas regiões do Cerrado. “Vimos que esse roedor adora a semente do capim braquiária; onde tem muito capim braquiária ele se concentra e se reproduz em grande quantidade.”
“Mostramos também que parece que, no roedor, o que está causando o distúrbio ecológico que leva essa doença ao homem é a degradação do meio ambiente. Quando muda o meio ambiente, o homem seleciona certas espécies de roedores, diminuindo a variedade e predominando uma espécie”, disse Figueiredo.
Oropouche
Outro vírus na mira dos cientistas do Centro de Pesquisa em Virologia de Ribeirão Preto é o Oropouche, bastante importante para a saúde pública, principalmente na Amazônia.
“Há mais de meio milhão de casos de infecção pelo vírus Oropouche no Brasil; ele só perde para a dengue em termos de frequência de arbovírus [transmitidos por artrópodes, como os mosquitos]”, disse o virologista Eurico de Arruda Neto, pesquisador principal do Projeto Temático, ao lado de Benedito Antônio Lopes da Fonseca, Aparecida Yamamoto e Victor Hugo Aquino Quintana.
O vírus causa uma doença similar à dengue, chamada febre do Oropouche. Mas em cerca de 5% dos casos pode provocar também meningoencefalite.
Até pouco tempo atrás, ninguém sabia como ele matava as células que infectava. “Descobrimos, por meio dos estudos realizados com o temático, que o vírus Oropouche de fato mata a célula porque induz a apoptose (morte celular programada). Essa apoptose é mediada pela via mitocondrial e é dependente de uma proteína viral específica, chamada NSs”, disse Arruda.
Com base em dados epidemiológicos e sorológicos, os pesquisadores acreditam que o vírus está mudando de comportamento e aparecendo em outras regiões do Brasil, além do Norte. “Os médicos aqui do Sudeste não conhecem esse vírus, mal o estudam na escola de medicina, porque é um vírus amazônico. Mas acho que ele circula muito mais do que a gente pensa no Sudeste. Só que ele circula na mesma época da dengue, então o médico confunde o quadro clínico com dengue”, disse Arruda.
A fim de testar drogas e vacinas contra o Oropouche, os pesquisadores desenvolveram modelos experimentais de infecção em hamster e em camundongo. “Em ambos os animais, o vírus mostrou infectar o sistema nervoso central afetando neurônios e induzindo a apoptose deles. Além do sistema nervoso central, o vírus também se replica com bastante intensidade no fígado, matando células hepáticas”, explicou Arruda.
Ao longo de quatro anos, cerca de 60 pessoas trabalharam nos mais de 40 subprojetos do Temático, que inclui ainda pesquisas sobre vírus que se tornaram conhecidos mais recentemente, como o bocavírus humano, descoberto na Suécia em 2005. No total, foram publicados cerca de 20 artigos em revistas científicas internacionais e os resultados foram incluídos em pelo menos oito teses de doutorado e 15 dissertações de mestrado.
Um dos artigos de maior impacto no âmbito do Temático, A Global Perspective on Hantavirus Ecology, Epidemiology, and Disease (doi: 10.1128/CMR.00062-09), publicado na Clinical Microbiology Reviews, pode ser lido em: http://cmr.asm.org/content/23/2/412.full.
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