Éfrem Ribeiro, Letícia Lins, Natanael Damasceno, O Globo
TERESINA, RECIFE, RIO - O agricultor José Ribamar Madeira de Albuquerque, de 52 anos, começou a sentir fraqueza e febre há seis meses. Percebia que os pés estavam inchando. Procurou o hospital da cidade onde mora, Miguel Alves, a 120 km ao norte da capital do Piauí, Teresina. Os médicos prescreveram medicamentos, mas os sintomas voltaram. Ele buscou outros hospitais públicos em Teresina, fez exames, mas não conseguia o diagnóstico sobre o que o afligia. Só depois de recorrer a um laboratório particular é que soube ser um dos quatro mil brasileiros que, a cada ano, contraem o tipo mais comum de leishmaniose, também chamada de calazar.
A quinta reportagem da série "Doenças da Negligência" mostra que a leishmaniose, incluída entre as chamadas doenças negligenciadas - que prevalecem em condições de pobreza, contribuem para a manutenção da desigualdade e são ignoradas pelos grandes laboratórios farmacêuticos por falta de interesse comercial - é um problema de saúde pública no país e no mundo.
Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), chega a dois milhões os novos casos registrados no mundo, a cada ano, dos dois tipos da infecção - a visceral, mais comum e que tem se urbanizado, e a tegumentar, frequente em áreas silvestres. O Brasil responde por 90% dos casos de leishmaniose visceral notificados na América Latina. A doença vem se tornando emergente entre os portadores do HIV, segundo o último boletim da Secretaria Nacional em Vigilância em Saúde (SNVS). Além disso, o mal vem se expandindo no país.
Em 2000, 88% dos casos de leishmaniose registrados no Bra$estavam no Nordeste. Em 2008, porém, a região passou a ter 48% do total do país, enquanto, no mesmo período, os números evoluíram de 17% para 48% nas regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste. Já quanto ao tipo tegumentar, entre 2000 e 2008 foram notificados 238.749 casos no país. A incidência atual chega a 26.528 novos registros por ano, de acordo com o Ministério da Saúde. Entre 2000 e 2008 a prevalência da doença caiu 41%, de 20,3 casos por cem mil habitantes para 10,5 por cem mil.
Apesar do avanço do parasita que causa a doença, os medicamentos para tratá-la não mudam: a droga contra a leishmaniose é a mesma desde os anos 1940, e é muito tóxica. Não está disponível nas farmácias, pois as pessoas carentes não têm como comprá-la. Mas, segundo pesquisadores da Fiocruz, pelo menos ela não faltaria no serviço público, estando sempre disponível nos hospitais de referência.
Tida como doença rural, a leishmaniose visceral vem se urbanizando e já se espalhou pelo país, diz o pesquisador Sinval Pinto Brandão Filho, do Centro de Pesquisas Ageu Magalhães, órgão da Fiocruz em Recife. Ele acompanhou a doença por uma década em Pernambuco - onde, a cada ano, 1,2 mil pessoas são contaminadas, e onde Brandão Filho observou que, em dez anos, a proporção de municípios com o tipo visceral no estado passou de 15,2% para 78,3%:
- A forma visceral vem se espalhando pelo país e já foi detectada até mesmo em bairros de classe média de cidades importantes como Belo Horizonte, onde muitos cães morreram (no cão, que funciona como o reser$ório do inseto que transmite a infecção para o homem, a doença não tem cura).
O alerta de Brandão Filho sobre o avanço da enfermidade faz sentido. O próprio Ministério da Saúde reconhece que a doença vem se expandindo gradativamente. Em 2008, foram registrados casos autóctones (contraídos no próprio local) em 20 estados.
Em Teresina, o agricultor José Ribamar Madeira foi internado com leishmaniose visceral durante um mês, em um hospital especializado, o Instituto de Doenças Tropicais Nathan Portella, do governo do Piauí. Com a doença, seu peso foi de 60 kg para 40 kg. Após um mês de tratamento, o lavrador, ainda muito pálido, está com 50 kg. Com duas filhas, não conseguiu voltar ao trabalho, e diz que só sobrevive porque, viúvo, recebe pensão deixada pela mulher.
Embora letal nos caninos, a enfermidade pode ser tratada no homem. Caso contrário, resulta em morte. Provoca anemia, fraqueza, aumento do baço e do fígado, e se agrava muito em casos de pacientes desnutridos. O Ministério da Saúde registra que a letalidade da doença vem subindo: de 3,2% para 5,6%, entre 2000 e 2008, registrando- se maior morbidade na faixa etária a partir dos 50 anos, embora a doença seja mais comum entre crianças de até 10 anos, nas quais a letalidade chega a 10%, segundo o pesquisador.
Em 2008, foram feitas 2.996 internações pela visceral, com permanência média de 14 dias nos hospitais públicos. Recentemente, as autoridades sanitárias descobriram mais um motivo para preocupação: a coinfecção Leishmaniose/ HIV (o vírus da Aids), resultado da urbanização da visceral e da ruralização da Aids. Dos 3.852 pacientes confirmados da doença, 136 tinham o HIV, sendo 73,5% homens, com idade entre 20 e 49 anos.
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